Quando se pensa em uma trilogia, por analogia, tem-se a ideia de três obras que compõem um conjunto maior. Esta é a definição mais convencional de todas. Mas nada em Fernando Gabeira é muito convencional.
Todo mundo sabe que não é de hoje que eu sou fascinado pela produção intelectual do Gabeira. Discordo dos críticos, que encerram a Trilogia de Depoimentos do nosso mineiro (sim, Gabeira nasceu em Juiz de Fora) em “Entradas e Bandeiras”. Só porque, diferente dos anteriores, “Hóspede da Utopia” é uma obra de ficção ele deixa de entrar na série? Não, eu não consigo concordar com isso. Mas vamos por partes.
Quando Gabeira volta do exílio, ele decide contar suas impressões sobre os três momentos que passou durante o período da Ditadura Militar. É aí que surge “O que é isso, companheiro?”, livro que inspirou o filme de Bruno Barreto. Nele, o autor conta seu primeiro desafio: como enfrentar o regime militar.
Um golpe militar é um pouco como uma grande e emocionante peça de teatro. Quando termina, você sente um grande impulso para estar junto das pessoas de quem gosta, ou mesmo telefonar para saber se estão bem.
O autor descreve – de forma bastante crítica, por sinal – o funcionamento e a organização dos grupos de esquerda que viviam na clandestinidade, o comportamento dos jovens marxistas, até chegar ao famoso sequestro do embaixador Charles Burke Elbrick. Daí até a cadeia. Da cadeia até o exílio – tema do segundo livro da série.
“O crepúsculo do macho” trata do período em que Gabeira foi parar no exílio. Como ficar quase 10 anos longe de seu país, sem informações sobre seus amigos e familiares? Como se integrar forçadamente à uma nova cultura, sem saber por quanto tempo terá que fazer parte daquela sociedade?
Ninguém será enganado: isto é uma viagem. Lembra-se dos filmes de bangue-bangue nos cinemas empoeirados do subúrbio? Lembra-se do momento em que a diligência ia ser atacada pelos índios? Era sempre num desfiladeiro. Cada vez que os cavalos pisavam a entrada do desfiladeiro, nossa angustia era precipitada pelos efeitos sonoros, anunciando que, a qualquer instante, a lona do carro seria crivada de flexas. Pois bem: é essa a angústia que sinto, quando entro na plataforma da estação central de Estocolmo.
Esta sequência de imagens é nada menos do que o primeiro parágrafo do livro. Pelo golpe inicial já dá para ter uma noção do tom angustiante que tomará conta de toda a narrativa. Mas, paralelamente a toda esta angústia, há contos e casos curiosos. Como na entrevista concedida por Gabeira.
O autor trabalhava como condutor de trem em Estocolmo. No réveillon, um grupo de jornalistas quis fazer uma matéria sobre pessoas que trabalham durante a madrugada e, consequentemente, passariam a virada do ano no trabalho – como condutores de trem e jornalistas, conforme exemplifica o autor, ironizando de suas duas ocupações. Chegando lá, os repórteres deram de cara não só com um trabalhador-da-madrugada, mas com um intelectual exilado político de um país de terceiro mundo que se tornara, por necessidade, um trabalhador-da-madrugada. E a entrevista se prolonga bem mais do que o previsto.
O tempo passa, o tempo voa, e a poupança Bamerindus continua numa boa e Gabeira ganha o direito de voltar ao Brasil, em 1979. Como voltar ao seu país após ficar quase 10 anos longe dele, sem informações sobre seus amigos e familiares? Quais as impressões sobre o novo país? Seria o mesmo que ele havia deixado para trás? São estas e outras perguntas que ele tenta responder em “Entradas e Bandeiras”.
“Entradas e Bandeiras”, na minha mais humilde opinião, é o melhor livro da série. Gabeira faz uma análise extremamente madura e bastante peculiar da sociedade brasileira no início dos anos 1980. Observa a ascensão do movimento ecológico, do movimento gay, as patrulhas ideológicas, os desmandos da esquerda. Se eu tivesse que escolher um único parágrafo para exemplificar toda a obra, seria o seguinte:
Culturas independentes como a dos negros exigiam um direito de existência. Os homossexuais, mantidos sob o signo do preconceito, começavam a se organizar em quase toda a parte. Os loucos, os velhos, as crianças, em breve iam abrir os olhos para o processo de opressão a que estavam submetidos. A sorte da nossa época dependia do proletariado. Seria ele capaz de captar essas novas tendências, ou embarcaria pura e simplesmente nas águas da repressão silenciosa e disfarçada contra milhões de seres humanos?
E com este livro, Gabeira encerra, para muitos críticos, sua trilogia de depoimentos. Mas discordo frontalmente desta marcação. Acredito que o quarto livro do autor se insere no mesmo campo dos demais. Apesar de ser uma obra de ficção.
É o “Hóspede da Utopia” que encerra os relatos de Gabeira sobre a ditadura. Nele, um casal errante busca da felicidade em sua forma mais plena. Uma história de amor, que tenta responder à pergunta formulada por Gabeira, assim que ele volta do exílio:
“Os políticos podem dar o balanço do número de mortos, do número de cassados, refugiados, banidos. Mas quem dará o balanço do medo dos projetos humanos que se frustraram, dos abraços que se negaram, dos beijos paralisados, tudo por medo? Quem dará o balanço do medo que nós tivemos?”
Desta forma, venho por meio deste post tentar corrigir um erro histórico – a idéia de que a Trilogia Série de Depoimentos do Gabeira tem apenas três livros. Há um quarto que, por trás de personagens fictícios, aparece um Fernando, que vai se revelando pouco a pouco nas entrelinhas de uma primorosa narrativa.
Sempre fui eleitor e nunca leitor do Gabeira.
ResponderExcluirFiquei totalmente contaminado pela sua opinião e quero todos, absolutamente todos que você citou.
São livros fáceis de achar. Em qualquer sebo você compra por R$5 ou R$10! E vale a pena!
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