Aristóteles descreve, no segundo livro da Retórica, as características dos idosos. São “desconfiados, devido à sua experiência”; “amam a vida, sobretudo nos seus últimos dias, porque o desejo busca o que lhes falta e o que lhe faz falta é justamente o que mais se deseja”; “são pessimistas”; “em tudo vêem um mal que os ameaça”...
Chico Buarque parece ter lido com bastante atenção a Retórica de Aristóteles, já que é basicamente este o clima do seu romance Leite Derramado.
Lendo este livro – que eu ganhei no início do ano, mas só tive tempo de pegar para ler agora – eu consegui entender porque ele foi tão premiado. Não é para menos: o livro é sensacional, tanto na forma em que ele se apresenta quanto no conteúdo apresentado.
Leite Derramado presenteia o leitor com a história de um homem de 100 anos, no leito de um hospital, narrando suas memórias. Em alguns momentos, quem anota o que o velho Eulálio está dizendo é uma enfermeira. Em outros, é a filha. O interlocutor muda de figura o tempo todo e, constantemente, o narrador se dirige a este interlocutor: “Bom dia, flor do dia, mas deve haver modos menos agourentos de se despertar que com uma filha choramingando à cabeceira”, diz no início de um capítulo. “Lá vem você com a seringa, é melhor dormir, tome meu braço”, diz, encerrando outro.
O mais interessante é a intensidade com que o autor, que tem 67 anos, imerge na mentalidade de um homem de 100 anos e pinta toda a história com as cores de uma pessoa com a idade já bem mais avançada. O narrador confunde personagens em um momento; em outros, diz que vai chamar os próprios pais, que já estão falecidos; conta a mesma história mais de uma vez em um curto período de tempo.
Em suma, é um livro de leitura rápida, mas que requer bastante atenção – principalmente ao nome dos personagens, pois o leitor mais distraído pode acabar cometendo confusões. Sua linguagem é simples e direta, mas a narrativa, até por se tratar de um livro de memórias, é toda em tempo psicológico. Não há respeito a uma cronologia muito estrita. Destaque para o modo como o Rio de Janeiro é descrito nas entrelinhas e para o fato de que tudo que é mais precioso para este narrador se despede aos poucos dele com o passar dos anos. Uma excelente reflexão sobre o fim e os fins da vida.
Eu fico encantada quando leio um relato de algum livro assim, cheio de paixão como vc fez. Agora terei que ler esse livro, não vai ter jeito. :)
ResponderExcluirQuando o livro é bom, merece todos os elogios do mundo. Quando é ruim, não termino de ler nem gasto meu tempo falando mal...
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